A coluna de hoje é a introdução de “Movido a Gasolina”, coletânea das melhores reportagens da minha carreira publicadas em revistas como Road & Track, Car and Driver, Quatro Rodas e The Red Bulletin.
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“Limão” é como os americanos chamam carros com defeitos irrecuperáveis. Se forem 0km, os fabricantes são obrigados por lei a retirá-los do mercado. Se forem usados (recuperados de algum sinistro, por exemplo) certos estados permitem a revenda. Como a procedência é incerta; a confiabilidade, duvidosa; e a garantia, nula, o preço é: baixo.
Baixíssimo. Tão baixo que até um jornalista brasileiro recém-formado consegue encaixar no orçamento.
Oitocentos dólares foi o valor que paguei pelo carro mais feio que já possuí, uma Dodge Caravan 1993, comprada no estado de New Jersey, mas com placas de New York. Faça as contas: em 2004, uma Caravan 93 possuía apenas 11 anos. Ou seja, o fato de custar somente 800 doletas significava que esse limão era bem, bem azedo.
Pintada em um British Racing Green cujo pedigree de automobilismo deve ter passado despercebido à soccer mom que a adquiriu zero-quilômetro, minha Caravan tinha vários detalhes estéticos adoráveis. Meus preferidos:
– Quatro rodas diferentes entre si. Duas possuíam calotas, e duas não. Duas possuíam pneus com banda branca, e duas não. Por pura poesia, formavam quatro conjuntos distintos: com calota e banda branca / com calota e sem banda / sem calota com banda / sem calota sem banda;
– Adesivos adjacentes de Jesus Cristo e Britney Spears no console de teto, em uma alegoria de sincretismo religioso de dar inveja à Bahia;
– No interior, nos ganchos onde outrora ancoravam-se os assentos (ver abaixo), acumulavam-se resquícios de um misterioso cristal esbranquiçado, semelhante ao nosso sal grosso. Uma década depois, enquanto assistia Breaking Bad, a epifania: minha Caravan provavelmente havia sido uma pioneira no transporte de crystal meth (metanfetamina) no início dos anos 90.
Pelos cinco meses seguintes, esse seria meu meio de transporte e meu lar.
Havia terminado um curso de verão em Publishing na New York University, e graças aos textos sobre automobilismo que publicava em inglês em meu blog – em 2004, todo mundo tinha um blog – recebi uma proposta de trabalho de um site pequeno, focado na Fórmula Indy, chamado AutoRacing1.com.
O lado ruim: o site não me pagaria um dólar pelo meu esforço. O lado bom: o AR1 conseguiria credenciamento para todas as corridas que eu quisesse. À época, a cisão da Fórmula Indy em duas entidades rivais, CART e IRL, significava um calendário dobrado. Eu poderia cobrir uma corrida diferente em praticamente todos os finais de semana naquele segundo semestre de 2004.
Nos findes em que não houvesse CART (no Brasil, chamada de “Fórmula Mundial”) ou IRL, poderia me credenciar para corridas da NASCAR.
Calendário cheio, portanto. Foram mais de 40 mil km (equivalentes a uma volta ao mundo completa) ziguezagueando loucamente por 23 estados americanos, afinal, o calendário das categorias não fazia concessões à conveniência de um brasileirinho que estava tentando acompanhar ambas em uma van caindo aos pedaços.
Era uma vida esquizofrênica: nos finais de semana de corrida, de sexta a domingo, eu dividia quarto com Mark, o dono do AR1. Eram três dias e três noites dionisíacos: cama e café da manhã de hotel, chuveiro quente e comida liberada na sala de imprensa desfrutados até a última gota, sem gastar nada.
Bandeira quadriculada, hora de pegar a estrada e viver como um mendigo de segunda a quinta: dormindo no chão da van em estacionamentos de Wal-Mart ou Rest Areas a caminho da próxima corrida, sem banho e com alimentação praticamente 100% à base do Dollar Menu do McDonald’s, os itens do cardápio vendidos na promoção por apenas um dólar cada.
A epopeia na van daria um outro livro, mas seguem aqui rapidamente alguns highlights:
– Originalmente configurada para sete lugares, a Caravan chegou em mim já com capacidade para apenas cinco passageiros, sem a terceira fila de bancos. Bastaram duas noites dormindo em posição fetal no banco traseiro para perceber a inviabilidade desse processo a longo prazo.
Era preciso desovar o “sofazão” para liberar o assoalho plano, mas como fazer isso durante um final de semana de corrida da NASCAR em Pocono, minha primeira cobertura? Esperei o anoitecer e dirigi uns 30 km de distância do autódromo até encontrar um local suficientemente ermo. Morrendo de medo da polícia (uma multa por littering, jogar lixo à beira da estrada, quebraria meu orçamento do semestre), arrastei o banco traseiro através de um capinzal até embaixo da única árvore em um raio de quilômetros. Ali, escondi o assento como Joe Pesci ocultaria um corpo em um filme de Scorsese. Não me orgulho, mas escapei da multa e dormi na horizontal pela primeira vez em três dias naquela noite;
– Em Pikes Peak, no Colorado, atravessei uma noite gélida no pé do pico celebrizado pela subida de montanha mais famosa do automobilismo mundial. Ligava a van, deixava o aquecedor bombar no máximo por uns 15 minutos e dormia. Acordava dali uns 45 minutos tiritando de frio, e repetia o processo. Valeu a pena: na manhã seguinte, avistei turistando no topo da montanha, a 4.302m de altitude, o narrador oficial da rede de rádio do Indianapolis Motor
Speedway, Mike King. Era véspera da etapa da Indy naquele final de semana, no oval de Pikes Peak International Raceway, hoje demolido. Me apresentei, Mike se impressionou com a minha história, e acabei convidado a assistir a corrida na cabine oficial da IMS Radio, fazendo uma pequena participação na transmissão em rede nacional.
Mas, antes disso, precisava descer do cume. A van havia sido valente para subir, mas na hora de encarar 4.302m morro abaixo, os freios superaqueceram e a amplitude térmica (verão na base e neve no topo) fez com que a velha Caravan sofresse um “derrame” elétrico: vidros do lado dianteiro e rádio deixaram de funcionar. Provavelmente apenas fusíveis, cuja reposição naquele momento seria um luxo extravagante;
– Quando se vive nas franjas de uma sociedade um tanto paranoica e policialesca como os EUA, encontros com os Homens da Lei tornam-se frequentes. Em toda minha vida, tive armas apontadas para minha cabeça por quatro vezes. Duas, por policiais americanos excessivamente desconfiados de um latino morador de van.
Aos 22 anos eu não notava isso direito, mas hoje percebo que a notícia de um brasileiro maluco apaixonado por automobilismo, e que havia largado tudo para viver em uma van caindo aos pedaços para escrever de graça para um site de nicho, se espalhou rapidamente pela rádio-paddock do mundinho motorsport americano.
Sondagens e contatos começaram a surgir. Praticamente não havia um final de semana de corrida em que eu não tomasse um café com alguém que, esperava muito eu, pudesse me dar um emprego de fato. Em retrospecto, foi um período crucial para minha vida profissional. Desse semestre maluco surgiram contatos com profissionais colocados em lugares de sonho para mim à época – revistas como Road & Track e Cycle World, categorias como a IndyCar e a NASCAR, o time de Motorsport Communications da Red Bull USA – que seguiriam me abrindo portas e rendendo frutos pelos 10 anos seguintes.
Na decisão do título da IRL em 2004, no superoval de Dallas-Fort Worth, aconteceu Tudo Ao Mesmo Tempo Agora, como no álbum dos Titãs. Na manhã da corrida, passando no pórtico de acesso, o motor da Caravan abriu o bico espetacularmente, superaquecendo com direito a um princípio de incêndio.
Era final de semana de decisão, havia piloto brasileiro na disputa (Tony Kanaan) e muito trabalho a fazer. Além disso, o CEO da subsidiária americana da Haymarket, editora inglesa à época considerada a maior do mundo especializada em automobilismo, estaria na corrida e havia pedido para “tomar um café” comigo.
A van que esperasse, portanto.
Trabalhei freneticamente o dia todo, Tony foi de fato campeão, e no entardecer o CEO da Haymarket, Ian Havard, me chamou para um papo na mureta dos boxes do Texas Motor Speedway. Disparou, de cara: “I am going to give you a job”.
Meu sonho de escrever sobre carros e ser pago (em dólar!) para isso estava realizado.
E a van? Não resistiu. O motor até foi consertado, drenando o que restava das minhas economias, mas, com menos de 30 km rodados depois da oficina, o câmbio automático travou em primeira marcha. Sem dinheiro para um segundo conserto, me arrastei até o estacionamento do aeroporto de Dallas, arranquei as placas da Caravan e escrevi “ABANDONED” com o dedo na poeira do vidro traseiro.
Contei o que restava do meu dinheiro. Era suficiente para uma diária de aluguel de carro com retirada em Dallas e devolução em San Diego, com um troco para hambúrgueres e Starbucks no caminho. Dirigi os 2.185 km entre Dallas e o extremo sul da Califórnia em exatas 23 horas (incrível do que é capaz um homem de 22 anos suficientemente cafeinado).
Passei a primeira noite em San Diego em um albergue. Devo ter dormido por umas 16h seguidas. Acordei e, daquele dia até hoje, nunca mais despertei sem tesão para ir trabalhar.
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